Reportagem da Revista Crusoé revela delações premiadas e possível participação dos políticos em esquemas de corrupção
No começo de agosto, a Operação Alcatraz, deflagrada em 2019, e sua derivada, a Hemorragia, de 2021, pareciam estar a caminho de um fim melancólico. Responsáveis por trazer à luz um esquema de corrupção profundamente entranhado na administração pública de Santa Catarina, que ao longo de mais de uma década desviou pelo menos 265 milhões de reais dos cofres públicos, elas sofreram três reveses sucessivos.
No primeiro revés, que data do início de agosto, o ministro Edson Fachin, do STF, tornou imprestáveis todas as provas colhidas pela Alcatraz contra o ex-presidente da Assembleia Legislativa catarinense, o influente deputado Júlio Garcia, do PSD, por incompetência de foro. Em fevereiro de 2021, Garcia chegou a ter o mandato suspenso e a prisão preventiva decretada. Passou alguns meses portando uma tornozeleira eletrônica. Hoje, livre da investigação, acaba de lançar sua campanha à reeleição.
No segundo, também em agosto, Joel Ilan Paciornik, ministro do STJ, anulou todas as decisões de uma das seis ações que integram a operação Hemorragia, que investiga especificamente os desvios de recursos para área da saúde. O Paciornik alegou que havia um erro de competência: ela deveria ter corrido na Justiça Estadual, não na Federal.
O terceiro revés, igualmente recente como as outras, é o mais grave. A operação Alcatraz teve origem num relatório da Receita Federal que apontou movimentações financeiras suspeitas de pessoas que, conforme se soube mais tarde, estavam no centro de grandes negociatas. Numa decisão ainda sujeita a recursos, o mesmo ministro Joel Paciornik decretou que o relatório não poderia ter sido compartilhado com o Ministério Público Federal da maneira como foi feito, sem autorização prévia do Judiciário. Se esse entendimento prevalecer, todas as denúncias e processos cairão por terra.
Enquanto apela contra essas decisões, o MPF continua o seu trabalho de investigação. No final de agosto, três delações premiadas foram homologadas, abrindo perspectivas para aquela que já foi apelidada de “Lava Jato catarinense”.
Crusoé analisou as delações a que teve acesso. Elas desvendam, com riqueza de detalhes, fraudes em licitações do governo estadual.
Nome conhecido no setor de tecnologia, o empresário Jaime Leonel de Paula Jr. se comprometeu a ressarcir os cofres públicos em R$ 39,2 milhões de reais, entre multas e devolução de valores desviados. Ele terá de cumprir sete anos de reclusão, mas apenas o primeiro será em regime fechado – e no seu domicílio. Paula Jr. teve bons motivos para querer relatar o que sabe e escapar de uma prisão mais severa. No final de 2021, ele vendeu sua empresa, a Neoway, para a B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Valor da transação: 1,8 bilhão de reais. Um futuro sem preocupações o aguarda daqui a sete anos.
Segundo o empresário, ele manteve, entre 2006 e 2018, uma estreita parceria com Milton Martini, funcionário público hoje aposentado, que durante sua carreira chefiou da administração estadual de Santa Catarina e ocupou por duas vezes uma secretaria de estado. Os dois se reuniam regularmente para analisar os projetos do governo estadual que envolviam serviços de TI. Eles escolhiam os alvos mais promissores e estabeleciam o valor que pretendiam ganhar. Em alguns casos, a empresa de Paula Jr. tinha a expertise necessária. Em outros, era preciso encontrar parceiros que topassem participar da falcatrua. Foi assim que, no caso esmiuçado na delação, eles aliciaram a empresa Micromed.
Como sempre acontecia, Paula Jr. e Martini prepararam o edital de licitação, superestimando os custos e incluindo nele requisitos que só a Micromed possuía. Cabia a Martini fazer com que o edital fosse adotado pela administração pública. Vencedora da disputa, em 2008, e contratada pelo estado, a Micromed passou a transferir uma parte dos pagamentos para uma empresa de fachada chamada Alfa, controlada pela família de Martini, mas na qual Paula Jr. também tinha participação. Essa empresa, sem nenhum funcionário e cuja especialidade era apenas lavar dinheiro permitia que seus cotistas recebessem “lucros” com benefícios tributários. Corrupção boa é aquela que não paga imposto.
Em mais de mil páginas de documentos, Paula Jr. forneceu à Justiça toda a contabilidade da empresa fantasma. Entre 2009 e 2011, o esquema desviou 2 milhões de reais por ano. Desses, 600 mil iam parar nos bolsos de lideranças políticas. Segundo Paula Jr., cabia a ele entregar o dinheiro para o deputado Julio Garcia, um dos mais influentes da Assembleia estadual, enquanto Martini fazia o mesmo com o emedebista Eduardo Pinho Moreira (assista ao vídeo). Moreira foi vice-governador de Santa Catarina nos dois mandatos de Raimundo Colombo, do PSD, entre 2011 e 2018. Nesse período, Martini também teve duas passagens de cerca de um ano pela Secretaria de Administração do governo.
As outras duas delações recém-homologadas são das irmãs Irene e Paula Minikovski. A história que elas contam é bastante parecida com a de Paula Jr.. Mais uma vez, Milton Martini faz parte do elenco, dessa vez acompanhado de integrantes da secretaria estadual de Saúde. Fornecedoras de programas de gestão de pessoal para hospitais, Irene e Paula tiveram diversos contratos superfaturados com o governo. Para repassar a propina aos políticos, elas se utilizaram tanto de um escritório de advocacia que fingia lhes prestar serviços idôneos, quanto de empresas de fachada.
Paula Minikovski contou aos investigadores ter entregue dinheiro em espécie no gabinete de Milton Martini. “Eu levava o dinheiro dentro de um envelope em uma mochila”, diz ela. “Martini tinha como hábito colocar a televisão no volume alto para que não houvesse risco de eu estar gravando a conversa.” Segundo o MPF, uma parte desse dinheiro ficava com a família e bancou, por exemplo, a festança de casamento de um dos filhos de Martini. Outra parte, afirma Paula Minikovski, tinha como destinatário o deputado Júlio Garcia.
Um certo João Eduardo Gomes, conhecido como Janjão, também teria recebido quantias polpudas. Ele era assessor e homem de confiança de Eduardo Pinho Moreira. “Os pagamentos realizados a ele tinham como destinatário, do que tenho conhecimento, o vice-governador”, conta Paula. Em certa ocasião, quando as irmãs Minikovski pensaram em interromper o esquema, houve uma discussão séria com Janjão. “Ele disse que o dr. Eduardo ficaria ‘puto'”, afirma Paula.
Com base nessas delações, o Ministério Público Federal pode, em tese, oferecer novas denúncias contra os figurões da política catarinense e seus operadores. A ideia é que os depoimentos, acompanhados de farta documentação, constituem provas autônomas e podem servir como origem para ações independentes.
Em sua outra frente de batalha, o MPF pretende demonstrar que todas as decisões judiciais que atingiram a Alcatraz e a Hemorragia recentemente são “inovações” que contrariam entendimentos consagrados dos tribunais superiores.
A decisão de anular todas as provas contra Júlio Garcia parte da premissa de que ele estava sendo investigado enquanto ocupava o cargo de conselheiro no Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, o que lhe daria direito a foro privilegiado. O MPF alega, no entanto, que nesse período a investigação atingiu tão somente a irmã de Garcia e que a simples menção ao seu nome como possível destinatário de propinas, segundo uma ampla jurisprudência, não tornava obrigatório o envio do processo para outra esfera judicial. Segundo os procuradores, Garcia só se tornou alvo da Operação Alcatraz no intervalo entre sua aposentadoria do Tribunal de Contas de Santa Catarina e seu retorno à Assembleia Legislativa do estado – quando era, portanto, um cidadão comum.
O entendimento de que uma das ações resultantes da Operação Hemorragia deveria ter corrido na Justiça Estadual se ampara no fato de que não houve desvio de dinheiro federal na licitação fraudulenta – tese que o MPF pretende mostrar que não se sustenta, visto que havia recursos federais misturados a estaduais em recursos destinados à área da saúde e que ajudaram a compor o total desviado.
Naquela que constitui a maior ameaça à Alcatraz, não apenas a jurisprudência, mas a própria letra da lei parece jogar a favor dos procuradores. A decisão do ministro Joel Paciornik ignora que a autorização prévia da Justiça para o compartilhamento de dados da Receita só se aplica a casos em que a investigação se relaciona a crimes tributários, ao passo que todos os processos da Operação Alcatraz e da Hemorragia são de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
A corrupção poderá não estar no centro das preocupações dos cidadãos nas eleições. Ela continuará sendo, no entanto, um flagelo para o Brasil, se os corruptos permanecerem beneficiados por uma jurisprudência que parece estar sempre ao sabor do vento.
Crusoé procurou Júlio Garcia, Eduardo Pinho Moreira e Milton Martini.
Por meio de sua assessoria, Garcia disse que não iria se pronunciar, por não conhecer o conteúdo das delações.
A defesa de Martini disse que só se manifesta nos autos do processo.
A defesa de Pinho Moreira enviou a seguinte nota: “Eduardo Pinho Moreira, por meio de sua defesa, vem esclarecer que, mesmo não tendo tido acesso às colaborações premiadas indicadas pela reportagem, tem plena certeza de que jamais cometeu qualquer ato ilícito e, em nenhuma hipótese, autorizou ou permitiu o uso de seu nome para a prática de qualquer irregularidade, tampouco recebeu por si, ou por interposta pessoa, recursos ilícitos ou indevidos vindos de qualquer pessoa. A defesa manifesta repúdio à divulgação indevida de conteúdo sigilosos de inquéritos em andamento, aos quais nem mesmo supostos envolvidos têm acesso. No mais, reafirma sua inocência.”